Existem filmes, filmes e filmes. Muitos você assiste e
nada acontece. Bons ou ruins, não importa: eles não te dizem nada e mal ocupam
espaço no seu repertório cinematográfico. Alguns entram com tudo para a
História do Cinema, promovem revoluções estéticas, avanços narrativos,
representam uma época e fazem parte do imaginário de cinéfilos ao redor do
mundo por serem mais do que um filme. Já poucos dialogam diretamente com você,
te tocam de um jeito que poucas coisas te tocam, te fazem pensar, chorar,
sorrir, acreditar... Esse último tipo de filme é íntimo e pessoal. Algumas
pessoas compartilham com você do mesmo sentimento em relação a eles. Outras
não. Simples assim.
Antes mesmo de ver Her (o título em inglês causa um
impacto muito maior em mim), eu já sabia do potencial que a produção tinha para
entrar na minha lista de filmes íntimos e pessoais. Como não amar e se
identificar com a história de um rapaz solitário, desiludido, de bigode e ar
setentista que se apaixona por um sistema operacional de computador? Eu sabia
que não tinha como resistir. “Her” já tinha me ganhado no pôster, no trailer e
na trilha sonora, só faltava conquistar meu coração definitivamente enquanto
filme.
Com expectativas mil, fui lá ver o filme e #morri. “Her”
não é perfeito e tem seus problemas (a transformação final do sistema
operacional é abrupta e sem sentido, por exemplo), mas é o trabalho mais
honesto e melancólico de um diretor (Spike Jonze) mais conhecido por suas inovações
narrativas do que propriamente por ser emocional. “Her” é um retrato
melancólico daquilo que estamos nos tornando, quase como uma fotografia do
nosso futuro, cada vez mais conectados com o mundo e desconectados dos outros e
de nós mesmos (as cenas das pessoas nas ruas conversando com seus sistemas
operacionais não diferem em nada das imagens das pessoas hoje em dia de olho na tela de seus
smartphones).
Mesmo que parta de uma premissa um tanto absurda, como em
seus trabalhos anteriores (principalmente “Quero Ser John Malkovich” e
“Adaptação”), Jonze cria uma obra crível e que fala muito sobre nós sem
ser necessariamente pretensiosa ou cabeça. Com um tom agridoce presente na
trilha sonora (cortesia da banda indie Arcade Fire), na direção de arte e nos
figurinos retrôs e no próprio comportamento dos personagens, Jonze estabelece
aos poucos uma conexão com o espectador e nos transforma no Theodore (Joaquin
Phoenix) que se apaixona por Samantha. Ele, um moço de olhos azuis límpidos e
postura acanhada que ganha novo frescor de vida ao se apaixonar depois de uma
grande desilusão amorosa. Ela, um sistema operacional sem nenhuma bagagem
emocional que ganha contornos tridimensionais graças à voz de Scarlett
Johansson.
Algumas sacadas do roteiro são geniais. Apesar de
retraído, tímido e desiludido, Theodore trabalha em uma empresa de cartas
personalizadas e as suas são as mais elogiadas e pessoais (e eu não quero viver
em um mundo em que as pessoas tenham que contratar um estranho pra escrever uma
carta para alguém que gostam). Apesar de causar estranhamento em algumas
pessoas (principalmente na ex-mulher de Theodore), o relacionamento entre
humanos e sistemas operacionais não é visto como algo bizarro pelo filme ou
seus personagens; aliás, o longa deixa bem claro que, nesse futuro não tão
distante, isso é extremamente comum.
Apoiado na cara triste de Phoenix, no carisma e simpatia
de Amy Adams (como a vizinha amiga perdida de Theodore) e na voz deliciosa de
Johansson, Jonze vai desenvolvendo a trama de “Her” e desfilando uma série de
temas que abrem discussões e mais discussões. Samantha questiona sua
identidade, se frustra com sua condição, mas se abre para um relacionamento
desconhecido (como os replicantes de Blade Runner ou o androide-garoto de
Inteligência Artificial, ela quer ser muito mais do que realmente é).
Theodore se perde entre o presente e o passado e repete
seus padrões de comportamento mesmo tentando construir algo diferente (o diálogo em que o personagem
diz que parece já ter sentido tudo e todo novo sentimento agora ser menor do que ele
sentiu antes é de partir o coração). Ao redor dos dois, pessoas perdidas diante
das novas possibilidades (Olivia Wilde tem uma participação pequena e marcante ao interpretar uma mulher bonita, simpática e totalmente insegura e
desesperada por uma nova relação). É como se todos, mimados e carentes,
tivessem desaprendido a se relacionar.
O caminho escolhido por Spike Jonze abre espaço para
várias críticas: o ar indie-alternativo pode não agradar a todos e repetir
estruturas, fórmulas e firulas do cinema, eeerrr, indie-alternativo; a
esperteza do roteiro e a proposta moderninha podem ir de encontro à
construção do filme enquanto mera história de amor; e o ritmo mais lento e
preocupado com a apresentação e o desenho dos personagens não é muito bem-vindo
em tempos de um cinema mais rápido e super editado. Mas Jonze parece saber
muito bem o que está fazendo e, por meio de diálogos e ações dos personagens,
conduz a produção com delicadeza e mistura ficção científica e romance com
propriedade.
Se pararmos para pensar, a proposta de Spike Jonze pode não ser nova ou extraordinária. Nos anos 1980, um computador e Lenny von Dohlen já disputaram o amor de Virginia Madsen no esquecido Amores Eletrônicos. Bianca não é um sistema operacional, mas a premissa do emocionante A Garota Ideal tem lá suas semelhanças com "Her": Ryan Gosling se apaixona e mantém uma relação com uma boneca de plástico com o apoio de sua comunidade. E filmes sobre perdão e corações partidos existem aos montes. Mas poucos têm a força de um Lost In Translation ou de um Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. "Her" entra nessa (minha lista) com louvor.